Com 21 anos, Ariane Sales é prova de que a luta por um mundo mais justo é diária e constante

Por Marcelha Pereira e Victória Z. Alves

“Acho que todas as mulheres têm que se unir para construir um mundo melhor, as mulheres vão mudar tudo”. Esse é o pensamento de Ariane Sales, jovem de Santo André/São Paulo, que reside no Rio Grande do Norte desde o início de sua pré-adolescência. Para ela, a sociedade precisa se transformar e tudo começa dentro de cada pessoa. Ariane, por si só, é a prova viva. Ao aceitar sua negritude e sua resistência enquanto mulher de baixa renda ainda na adolescência, hoje ela faz parte ativamente da luta pela qual tantas outras mulheres negras vivem pelo Brasil.

Crescer em uma sociedade machista e racista significa sofrer e aprender a lidar com o preconceito desde a infância. Com Ariane não foi diferente, a pressão estética para que disfarçasse seus traços negros chegou e durante boa parte da sua vida ela alisou seu cabelo; até que em 2014 tudo começou a mudar. Ela afirma que a motivação foi estar cansada de ser alguém que ela não era de verdade, além dos altos custos para manter um cabelo alisado quimicamente. Segundo conta, era melhor aceitar quem era de verdade.

Após a decisão, Ariane passou nove meses na transição capilar e em seguida fez o Big Chop, procedimento de corte da parte do cabelo com química para que a parte natural continue a crescer. Um momento que se tornou bastante significativo, de acordo com ela. “Me olhei no espelho [após o corte] e comecei a chorar, eu nunca tinha me sentido tão livre como naquele dia. Pensei: Caramba, essa sou eu, que felicidade. A primeira coisa que fiz foi arrumar o cabelo, passar um creme, um arquinho e fui mostrar a minha vó. Para mim foi muito bom. Todo mundo achou lindo, minha mãe gostou também, e aí eu me senti muito bem. Foi aí que realmente passei a me reconhecer como uma mulher negra”, compartilha.

Momento em que Ariane fez o Big Chop, conhecido por ser um corte que tira a parte do cabelo alisada por química | Foto: Arquivo pessoal

No período de transição, é normal que muitas mulheres se sintam inseguras com sua aparência. Para Ariane, a mãe foi a sua maior fonte de inspiração. As conversas entre as duas a fizeram se manter forte e confiante para continuar com todo o processo de redescoberta de sua negritude, já que desde pequena parte de sua identificação com a negritude, em especial com seu cabelo, foi apagada por falta de estímulos da mídia e da sociedade.

Ser uma criança negra não foi uma tarefa fácil para Ariane | Foto: Arquivo pessoal

“Antigamente, não era comum ver uma criança negra com boneca negra, eram bonecas brancas. mas hoje em dia isso mudou. Hoje, se eu tivesse um filho, ia dar preferência para brinquedos que ele se identificasse. Não há nada mais estimulante que isso.”

Passar a sentir representação fez grande diferença em sua vida, ainda mais se ver representada na televisão, por meio da atriz e apresentadora Taís Araújo. Desde pequena ela se sentia encantada pela mulher e a admiração só aumentou quando Ariane percebeu que a atriz passava a assumir seu cabelo crespo. “Eu me enxergava muito nela. Além dela ser negra, ela alisava o cabelo e eu pensava ‘é normal’, sendo que eu não sabia da realidade dela, porque ela tentava se incluir nos padrões, mas hoje já não é assim. Hoje, ela já faz as novelas com os cabelos crespos dela. É legal ver que isso mudou”, diz mostrando como é importante o respeito à diversidade e pluralidade dos corpos e cabelos por parte da mídia. Contrariando, assim, os padrões estéticos pré-definidos pela sociedade, os quais desrespeitam a autenticidade e singularidade das pessoas.

Assumir o cabelo crespo foi um dos desafios de Ariane, mas eles não pararam de surgir. Em 2016, ela se tornou estudante de Administração em uma universidade particular de Natal, com bolsa de 50% pelo Programa Universidade para Todos, o Prouni, do Governo Federal do Brasil. Com a aprovação no curso, ela passou a frequentar um ambiente elitizado, onde a maioria é branca e rica, apesar de haver estudantes que, assim como ela, trabalham para pagar a graduação.

“Na maioria das turmas, grande parte dos alunos possuem pele clara. E tem também a questão do nível deles, digamos assim, a maioria das pessoas dependem dos pais, não são pessoas que majoritariamente trabalhem para arcar com suas despesas”, afirma. Porém, apesar desse fator, Ariane diz que não sente preconceito no ambiente acadêmico, ainda mais pelo fato de ter outros negros em sua turma. Então, não teve de lidar com uma situação preconceituosa diretamente.

No entanto, ela comenta ter passado por situações desconfortáveis quando passou a frequentar o mercado de trabalho. “Já sofri certo preconceito tanto pela questão hierárquica, quanto pelas características físicas. Quando você tem um um ‘nível baixo’ na empresa, você está sujeito a passar por várias situações. Eu já trabalhei em lugares muito ‘padrõezinhos’, só que eu não me deixei levar por isso, sempre mantinha meu Black e me vestia do meu jeito”, diz.

Mas o preconceito não está apenas no ambiente profissional, ele perpassa por todas as camadas da sociedade. Sobre isso, Ariane divide uma situação pela qual passou enquanto fazia compras no centro da Cidade Alta de Natal. “Eu estava procurando uma coisa, que não tinha encontrado em lugar algum, e o segurança que estava na porta falou assim: ‘Meu Deus, esse povo não se enxerga não é? Um cabelo desse…’. E eu não virei, fiquei escutando de costas. Aí ele continuou: ‘Não, se fosse eu, alisava logo.’ Foi quando virei e ele virou o rosto, depois de me olhar. Uma vendedora se aproximou para falar com ele para perguntar o que ele havia dito e ele repetiu. Ela então falou: ‘É, meu cabelo é cacheado… Mas eu aliso.’ E foi uma coisa que me deixou muito chateada. Com isso, eu passei muito tempo sem ir nessa loja”, diz a estudante.

Após concluído todo o processo de transição capilar, Ariane passa a se reconhecer | Foto: Arquivo pessoal

A estudante de Administração fala que não costuma se importar com as opiniões dos outros que não lhe acrescentam em nada. Contudo, ela acredita que as pessoas devem respeitar o que a outra é, porque muitas vezes uma opinião pode não ser bem-vinda. “Cada pessoa tem seu ‘padrão’ na sua cabeça, basta você respeitar o que o outro aceitou para ele. Se a pessoa quer chegar e vir falar ‘Ah, você está gorda’, por que não pergunta se eu estou feliz? Se eu estou bem? Seria muito melhor”, encerra.

Empreendedorismo como uma forma de se mostrar ao mundo

Desde criança, Ariane tem a veia para a Administração, assim como para o empreendedorismo. Segundo ela, isso veio de seu pai, que tem uma microempresa de bicicletas. Mesmo não tendo o Ensino Médio completo, ele aprendeu como funcionava a parte da manutenção das bicicletas a medida em que ia montando e desmontando-as. Ela conta que sempre o viu como uma pessoa com perfil administrador nato, porque ele nunca estudou e mesmo assim conseguia trabalhar, produzir e administrar bem seu negócio.

Motivada pelo pai, ela também sempre quis ter sua própria empresa e ir atrás do que gostava. “As minhas brincadeiras de criança não era de professora, nem de mamãe, era de secretaria. É uma coisa que desde pequena eu tenho dentro de mim, que é a vontade de fazer Administração”, comenta.

E foi a partir dessa motivação em construir algo por si que Ariane ainda criança, aos 8 anos, fez um curso de bijuteria em Santo André, onde morava. O aprendizado não foi em vão. Após anos, quando já estava morando em Natal, mais precisamente em 2018, ela decidiu usar seu conhecimento prévio e começar a fazer fazer bijuteria novamente, dessa vez para vender.

A oportunidade faz com que ela melhore cada vez mais na área do Marketing, já que ela administra suas vendas por meio de um perfil no Instagram. Quando a demanda é maior, ela procura atender motivada sempre pelo amor que sente ao fazer bijuterias. O fato da atividade ser sazonal, ou seja, Ariane só produzir seus acessórios em momentos-chave, mostra a preocupação da estudante em oferecer um bom produto a seus clientes.

Com sorriso aberto e olhos acolhedores, a jovem diz que sempre quis ter algo dela. Ela não sabe ainda se a bijuteria vai ser o seu futuro. Outros projetos podem surgir, mas ela tem certeza que quer conquistar o seu espaço. Como diz: ver seu pai correr atrás dos sonhos, não apenas os profissionais, a inspirou e a moldou para o que ela é hoje.

Protagonismo feminino e a ânsia por uma sociedade mais justa

Nessa busca pelos seus sonhos, Ariane compartilha orgulhosa um projeto que está desenvolvendo juntamente com mais duas colegas, na empresa onde estagia, para a defesa de suas lutas. Com a iniciativa dentro do local de trabalho, elas estão promovendo discussões sobre pautas que abordam a importância sobre o respeito, inclusão e diversidade. A ideia surgiu pelo fato da empresa ser constituída em sua maior parte por colaboradores homens. Com isso, as meninas levantaram a discussão sobre como incentivar o crescimento feminino dentro da empresa, fazendo, assim, com que as mulheres possam chegar ao topo. “A gente percebeu que seria interessante debater sobre isso. Inicialmente, seria apenas para as mulheres, mas como queremos fazer uma transformação, incluímos os homens também”, afirma.

Por meio do projeto, Ariane encontra espaço para mostrar como o empoderamento feminino é importante, ainda que dentro da temática haja vários feminismos que se encontram no discurso, mas não são totalmente iguais. Enquanto seu lugar de mulher negra e de baixa-renda, Ariane consegue compartilhar a sua vivência, que não é fácil, com os colegas, como conta: “Você ser uma mulher na sociedade já é difícil, você ser uma mulher negra é mais difícil ainda, porque mulheres brancas têm privilégios, mulheres negras não. Então, é tudo você indo atrás e tendo que lutar. Porque você não tem facilidades, não é comum”, explica.

Segundo Ariane, há ainda a questão da equidade a ser debatida. Extremamente importante para que os direitos sejam garantidos de forma a entender e atender as fragilidades socioeconômicas da população. Ela se cita, inclusive, como exemplo, o fato de ser cotista em sua universidade. A estudante possui 50% de bolsa pelo ProUni não apenas por cor/etnia, mas por ter o ensino fundamental e médio integralmente concluídos em escola pública. “O meu ensino não foi igual a de uma pessoa que estudou em escola particular durante a vida toda, então não é privilégio, é você saber dosar o que é o correto para cada pessoa”, fala.

Ao tratar de todos esses temas com os colegas de trabalho, Ariane dá seguimento à sua própria revolução, contagiando pessoas por onde puder passar.

Considerando-se uma pessoa persistente, resistente e sonhadora, a jovem tem a sede de tornar esse mundo um espaço melhor. Por causa disso, é tão importante para ela debater sobre todos os seus temas de luta com quem deseje ouvir e aprender.

Por fim, como principal desejo para o mundo, Ariane compartilha: Sonho muito em um lugar melhor, em que a gente possa viver sem ficar temendo.