Clarice sentada nas cadeiras do Decom (Foto: Giovana Góis)

Por: Giovana Góis e Kaio Pimentel

“Nós vamos vivendo sem saber o amanhã”

Nos corredores do prédio do Decom (Departamento de Comunicação da UFRN), uma mulher simpática com ar risonho, cabelos claros, franja, pele branca, com cerca de 1,70 de altura faz seu itinerário em direção a sala de aula localizada no segundo andar, para mais um dia de aprendizados do curso de Audiovisual. Clarice Alves Costa Oliveira, 18 anos, é bolsista da Comunica, Agência de Comunicação da faculdade, trabalha com mídias sociais, mais direcionada ao Tik Tok e Instagram da UF. “Comecei agora, estou no primeiro semestre”, diz a estudante. Ao ser questionada se identifica como transexual, transgênero ou travesti, responde: “É uma pergunta difícil, tenho perspectivas de gênero, mas não vejo diferença entre alguns termos, entre ‘transgênero’ e ‘transexual’, nessa classificação para mim, sou os dois. E como travesti, não me identifico, porque quanto uma pessoa privilegiada, acho que me autodeclarar seria fora do meu contexto”. A universitária se assumiu entre os 12 e os 13 anos e afirma ter passado por um processo demorado para conseguir o apoio total da família, já que nunca foram realmente conservadores, hoje a amparam completamente: “De acordo com eles, o receio era mais sobre como a sociedade ia lidar comigo […] Acho que era mais isso do que não quererem me aceitar”.

Mesmo sofrendo preconceito, ela veio de um contexto de privilégios, era de uma escola da elite natalense, onde era a única trans no meio de uma escola cheia de brancos ricos. “É uma bolha muito específica de pessoas, que possuem o pai empresário, político, então sei do lugar que vim. Meus pais têm condições de me manter, de pagar minha terapia hormonal, nunca tive que correr atrás de dinheiro para comprar roupa e trocar guarda roupa. Quando preciso ir para um canto, não preciso pegar um ônibus que me coloca em situação de risco, consigo pegar um carro. Em um contexto geral, onde 90% da população trans está na prostituição, não estou nem perto desta situação”, reconhece.

Ao ser perguntada sobre ocupar o espaço dela na universidade, Clarice diz que é um uma coisa absurda: “É bizarro, nós quanto pessoas trans, vivemos só seguindo o dia, nós vamos vivendo sem saber o amanhã. Nós vivemos nossa vida […] A gente não percebe a imensidão dos contextos que estamos inseridas. É muito raro ver uma mulher transgênero ou travesti na universidade, geralmente as que chegam até aqui são mulheres trans brancas, a prostituta não conseguiria chegar neste espaço onde estou”, confessa.

Em 2018, a pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) apontou que pessoas trans representavam apenas 0,1% de todas as matrículas no ensino superior público. Nesse contexto, a ouvidoria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) não possui os dados dos estudantes transgêneros da instituição, mas foram protoculados 95 processos de solicitação do nome social na faculdade.

A jovem relata um caso de agressão verbal que passou junto de uma amiga em um parque de Natal, as quais foram vítimas de transfobia. Ela já estava passando pela transição de gênero enquanto, segundo ela, a amiga não se encontrava com todos os arquétipos femininos, estava no começo da transição e encontrava-se mais como trans não binária. Chegando à porta que dá entrada ao parque, um morador em situação de rua começou a gritar com as duas. “É um homem ou uma mulher? Não entendo!”, zombava o homem, rindo. Quando estavam voltando, ele repetiu o mesmo comportamento, gritando de forma violenta e alta os mesmos dizeres.

Outra situação de violência que passou, dessa vez desacompanhada, foi quando, em um pequeno shopping da cidade, foi assediada por um homem. O shopping é conhecido por polêmicas contra a comunidade trans, um dos casos foi quando a candidata a deputada federal, Thabatta Pimenta, foi barrada no banheiro feminino e, nessa mesma semana, a entrevistada sofreu o caso de assédio. Enquanto estava na praça de alimentação, antes da pessoa esperada chegar, Clarice viu um homem, aparentemente bêbado, e que poderia ser um garçom, falar: “Você parece ser uma modelo!”. Clarice agradeceu e se retirou. Passeando pelo shopping, viu que ele estava a seguindo. Até que parou em um local que não tinha muita gente e ficou insistindo e a chamando para perto, gesticulando com a mão. A universitária, com fones de ouvido, pensava que estava tentando falar e não estava escutando por causa do som alto que vinha do fone. Tirou os fones e inclinou a cabeça na sua direção. Não adiantava, ele queria que ela chegasse mais perto, gesticulando novamente, deixando-a incrédula. Em pouco tempo, o assediador aproveitou o contexto da situação, tentando puxar e beijar Clarice, que se afastou depressa: “Você é transexual? Muito linda”, disse o homem. Tentou se aproximar de novo e, foi assim, que a discente fugiu. “Foi uma situação bem bizarra”, relembra. “Eles não deixam a gente entrar no banheiro. Preferem, no espaço público, o assédio à pessoas trans”, esclarece.

No curso, é bem engajada a dar visibilidade à comunidade T por meio de seus projetos, atuando como diretora de arte e com uma estética de valorização e do engajamento da coletividade do movimento. Dentre muitas ideias, a de um romance que está escrevendo junto de um amigo com protagonistas como ela.

“Como pessoa trans, eu tenho que tomar todas as vantagens que eu puder”

Outro dia encontramos Verônica Pascoal Maia Rocha, 20 anos, estudante e bolsista. Ao ser questionada sobre a dificuldade para conseguir a bolsa, a universitária fala que teve muita sorte, conseguindo pouco antes do final do primeiro período. Identificada como mulher transgênero, fala sobre notar corpos transexuais circulando pela universidade: “Recentemente tenho notado mais pessoas trans por aí, talvez seja porque me descobri nos últimos anos. Parece que as coisas estão ficando um pouco melhores, é muito bom ver isso, as pessoas se aceitando um pouco mais”. Sobre a escolha de cursar Audiovisual, diz que a mãe a apresentou o Instagram da websérie “Natal é um Ovo”, organizada por pessoas do ramo, depois disso, ela teve certeza de qual curso escolher: “Era exatamente o que eu queria, foi assim que escolhi uma coisa que amava e também me aproximei da minha mãe. É muito importante esse curso para mim”, acrescenta. Acerca de se sentir privilegiada, ela diz: “Demais demais! Afinal de contas, a minha mãe me aceitou. Aqui em Natal existe o Centro de Cidadania LGBT […], lá conheci muita gente trans, é um lugar muito importante para todo mundo que é LGBT. Conheci muitas histórias deles tendo que se mudar aos 14 anos, trabalhar cedo e minha mãe nunca ameaçou me tirar de casa”.

A mãe suspeitava que ela era trans: “Na verdade, na minha vida, acho que ela já me perguntou muitas vezes se eu era trans, falava ‘não, não, eu não!’. Na semana que me descobri trans, ela me perguntou e neguei de novo. Quando contei, já tinha contado para três amigos, me deram tanta confiança, porque me aceitaram completamente. Contei para ela e os próximos seis meses foram complicados, mas as coisas começaram a melhorar. […] Eu escrevia cartas para ela quando não sabia direito o que dizer, escrevia muita poesia sobre como estava me sentindo, principalmente na pandemia, não tinha muita gente para contar, não tinha como sair”. Depois dos primeiros dias, Verônica ratifica o apoio da mãe: “Me deixou experimentar umas roupas dela“, celebra. Ao tratar sobre ser solitária e não ver muitas pessoas transgêneros na faculdade, ela diz ser um pouco e que o número de pessoas da comunidade na UF é maior do que aparenta: “Muita gente é trans ou não binária e a gente não consegue perceber. Acho que tem uma questão de ser pouco representada e isso é uma coisa que tem em todos os campus do Brasil e do mundo. Pessoas trans não são colocadas no mercado de trabalho e na educação da forma que deveriam”, alega.

A respeito de viver cada dia como o último: “Trans morrem todo ano por crimes de ódio e brinco com meus amigos, às vezes. Acho que é uma forma de lidar, mas sempre falo ‘Eu não planejo para daqui a 20, 30 anos porque a expectativa de vida é 35 e isso me dá uma perspectiva diferente“, indica. A estudante diz que é uma visão de vida onde muitos sentem que não têm futuro por morrer de maneira tão prematura. “É difícil até sentir vontade de querer estudar, de querer ir atrás desse tipo de coisa de longo prazo. […] É mais uma questão de resistência”, complementa. Verônica diz que foi super bem acolhida na faculdade e que se sente mais ansiosa em transporte público, no bairro onde mora e até mesmo em situações familiares. A universitária não planeja a próxima década da vida, pela possibilidade de não estar viva mas, para ela, uma data que a marca são seus aniversários, encarados como mais um ano de vitória e de luta. Ela fala sorridente que cada ano do futuro será uma conquista. “Quando estiver com 90 anos vou falar: ‘Eles não conseguiram me tirar daqui não!’”, promete.

Com relação às produções próprias, dirigiu curtas no mundo acadêmico da faculdade e foi roteirista de um documentário chamado “Mundo Um”. Entre seus projetos, já elaborou materiais com Pedro Fiuza. “Sou muito privilegiada, de muitas formas”, assegura.

Verônica no jardim do Setor I da UFRN (Foto: Giovana Góis)

“Eu tenho direito de estar aqui como qualquer outra pessoa”

A caminho de Clarice Oliveira Tavares, 19, cursa Letras Português e é coordenadora de diversidade sexual e de gênero do Diretório Central dos Estudantes (DCE). O termo ‘transexual’ está em desuso, pois remete ao ‘sexo’, quando se trata de gênero. “Trans é além, além do gênero”, reflete. Sua infância foi marcada por estranhamento. Queria ser uma garota. “O gênero é maleável, muda o tempo todo, quando a sociedade muda, o gênero muda”, fala. Mulheres universitárias como ela se sentem solitárias e impostoras, mas encontram refúgio em um grupo de um aplicativo de mensagens instantâneas que reúne cerca de vinte transgêneros que conversam sobre o sentimento de vazio que a universidade pode proporcionar. O espaço universitário é exclusivo, mas o lugar parece mais único para trans e travestis. Clarice reclama da dificuldade da permanência estudantil para essa população que, ao abandonar, imigra para o trabalho informal ou ao mercado sexual: “É triste ver que a prostituição é uma forma de recorrer, porque todas as outras formas são excluídas. Oportunidade para emprego não tem”. Expõe que uma amiga sua, há um ano em um serviço de treinamento para o mercado de trabalho, é ignorada e que expulsaram uma mulher por denunciar a transfobia do programa. Nascida e criada em Natal, mora com seus pais. “Eu tenho um teto sob minha casa, isso já é muita coisa”, assume.

Desabafa sobre ter sido abordada por seguranças da UFRN que apontaram uma arma quando estava com o DCE no Departamento de Artes (Deart). Os senhores pediram a identidade de Clarice que, na época, apenas tinha o RG social. “Quando você é trans, tem direito a uma identidade, mas não consta como identidade nacional. É uma carteira a mais com seu nome social, mas as pessoas vêem o meu nome morto”, relata. Nome morto, explico, é o nome que a família escolheu. “Mostrei essa carteira, ele não aceitou, ficou me chamando pelo meu nome morto. Isso foi gravado, a gente denunciou, entregamos uma carta à reitoria. Não deu em nada”, de acordo com ela.

Para a discente, o brasileiro tomou mais consciência da luta trans, mas os ataques, retórica transfóbica e a falácia de ideologia de gênero permanecem. “Acho que chegamos em um momento que as lésbicas e os gays já estão em todo lugar, é mais difundido. A maioria das pessoas sabem o que são, mas isso não quer dizer que [acabou a homofobia]”, presume. Apesar de respirar política, voluntariamente e involuntariamente, não pensa em entrar nesse ramo por não se achar uma “boa pessoa”. Entretanto, enxerga política a todo tempo e em todos os lugares. “Talvez ser primeira-dama”, brinca. Clarice sonha em ser professora. Se sente mais confortável na universidade com os amigos do movimento estudantil. “Temos uma desigualdade enorme em nosso país, não só com quem é trans, mas quando tem muito desemprego são as pessoas trans que estão mais desempregadas. Quando tem muita fome são as pessoas trans que estão com mais fome”, conclui. Lugar de trans, para ela, é onde quiserem.

Clarice escolhe um livro na Biblioteca Central Zila Mamede (Foto: Kaio Pimentel)

“No ambulatório, o foco é na pessoa e não no hormônio”

A primeira travesti registrada a cursar Saúde Coletiva na UFRN, Samantha Araújo Melo, 19, foi expulsa de casa cerca de cinco vezes pela mãe aos brados de ‘aberração’. Na última vez, teve que fazer a mala um dia antes de seu aniversário. Ocupa o tempo estagiando no Ambulatório TT. Por lá, oferecem hormonioterapia, exame de sangue, tratamento de saúde mental, assistência social, psicológico, encaminhamento para outros serviços e testagem de HIV e IST, por exemplo. É um serviço de saúde que atende a população transgênero. Surgiu porque as Unidades Básicas de Saúde (UBS) são taxadas de insensíveis por não atender e não fazer um acolhimento humanizado para as pessoas LGBTs, queixa principalmente de pessoas trans e travestis que não utilizam, como Samantha, por sentir falta de tato. “400 pessoas já usaram o ambulatório, mas 200 pessoas acessam com regularidade. 90% são homens trans e trans masculinos e 10% são mulheres trans e travestis”, segundo a estagiária. Na primeira sala, um homem trans abalado aconselha sobre a necessidade de defesa e de proteção contra a violência e a transfobia crescentes. Samantha o abraça sem conhecê-lo. Ocorrem rodas de conversas mensais sobre temáticas como saúde mental, sífilis congênita e prevenção combinada. Ela relata uma conversa passada sobre corpos ideais por ter as chamadas “trans de verdade” e as “falsas” sem uso hormonal e prótese. Elas são renegadas pela própria comunidade e por sua identidade.

Como outras, também lida com a solidão na universidade que é substituída por pertencimento ao passar por outras trans no campus. “A maioria das trans que estão [lá] são de classe média e brancas”, aponta. “A pessoa desrespeitar seu nome [social] é dizer que você não existe”, afirma. Não vê acolhimento da faculdade. Julga que seus colegas são intimidados com a sua participação e erram constantemente seu pronome. Nega que tenhamos mais consciência da luta. “Ainda falta muita coisa para a gente ser vista”, responde de forma mansa. “Até em movimentos ditos de esquerda, a nossa luta é muito secundarizada e posta de lado”, lastima. “A vivência de um homem gay, cis, branco e bombado é muito diferente de uma travesti, preta e periférica. Enquanto gays, lésbicas, cis e bissexuais estão lutando para casar, lutamos para existir, para sermos reconhecidos pelos nossos nomes e para ter dignidade”, defende. Se interessa por filosofia, leitura, escrita, canto, dança e pela vida. Na universidade não se sente confortável, apesar de lá estudar a maioria das pessoas que lhe inspiram, como Clarice Oliveira Tavares.

O horário de funcionamento do ambulatório é de segunda-feira a quinta-feira das 9h às 12h e das 13h às 16h. Sexta-feira apenas de manhã. Sábado e domingo fechado. Imagino que o passatempo favorito dela na folga seja comer como havia confessado. Para deixar um gosto final, aí vão seus pratos favoritos: arroz e feijão, farofa, hambúrguer de soja e de grão de bico. Fome. Fome de vida. Tudo isso na Avenida Nascimento de Castro, 1982 – Lagoa Nova.

Samantha nas escadas do Ambulatório TT (Foto: Kaio Pimentel)