Por Vicente Cabral
No dia 25 outubro de 2024, ao completar 53 anos, Beto Potyguara listou uma série de atividades que havia procrastinado ao longo da vida e firmou o compromisso de realizá-las no período de um ano. Além de correr uma maratona e entrar na academia, por exemplo, na lista do artista gráfico também estavam as metas de voltar a publicar quadrinhos, voltar a participar de eventos, escrever outros cordéis e publicar, dessa vez de forma física, seu primeiro cordel. Escrito em 2022, O Galego dos Raio daria início, em 2025, à Liga Heroica do Cordel.
“Eu sempre desenhava com meu filho, o caçula. ‘Pai, desenha aí herói’. Pra ele pintar”, conta o natalense. “Fazia com uma má vontade danada, né?”, brinca. Em um desses momentos, saiu o desenho do Thor, personagem dos quadrinhos da Marvel, no traço de cartum, que é característico de Beto. “Ficou tão legal que eu disse ‘Não. Não vou dar pra esse boy pintar, não’”. Foi a partir da ilustração, feita com giz de cera, que ele se sentiu inspirado a escrever o texto de O Galego dos Raio: “Ele é tido como um deus/ Mora em riba lá no céu/ Solta raio pelas ventas/ Até casa do chapéu/ E é virado na cachaça/ Chamada de hidromel”. O cordel, no entanto, foi disponibilizado apenas online.
Mas, se naquele outubro de 2024 a intenção do potiguar era publicar o cordel físico da releitura do Thor e escrever – não publicar, apenas escrever – outros cordéis, em novembro do mesmo ano seus planos mudaram. Em um mês, ele escreveu mais seis títulos: O Cabra que Enfezado Vira Bicho (Hulk), O Doidinho das Teia (Homem-Aranha), O Cabra-Macho Voador (Super-Homem), O Doido de Tanga que Vive nos Mato (Tarzan), O Maguinho Brilhoso da Tábua Voadora (Surfista Prateado) e O Alma Penada que é Chegado nas Caminhadas (O Fantasma).

Intitulada Liga Heroica do Cordel, a coleção foi lançada, em evento virtual, no dia 30 de janeiro deste ano, data em que é celebrado o Dia do Quadrinho Nacional. De lá para cá, outros títulos foram publicados, entre os quais Dona Arretada (Mulher-Maravilha), O Galado das Águas (Aquaman) e A Doidela Desmantelada (Arlequina).
“É um projeto educacional isso aqui”, diz Beto. “Minha vibe aqui é o quê? É pegar você que não curte quadrinhos ou você que não curte cordel. É pegar um público novo. Meu desafio é um desafio como educador. Aproximar o jovem da nossa cultura”.
Ele acrescenta: “Os trocadilhos é que me inspiram a escrever. E a receptividade do público”. A receptividade já é sentida. Beto conta que, no primeiro dia da GGCON, evento de games e cultura geek realizado em agosto na capital do Rio Grande do Norte, chegou a vender 100 cordéis: “Qual é o cordelista, na atualidade, que vende 100 num evento? E num evento que não é nem evento de cordel ou evento literário”.
“Cara, são 15 anos fora do circuito. O quadrinho sempre teve lá. Mas não como produtor de quadrinhos. Isso me fazia falta. Quando eu olhei pra isso, onde você estava e onde você poderia ter chegado. Em 2011, eu estava no auge”, afirma.
“O traço antecede o verbo”
Segundo Beto, sua recordação mais antiga é no colo da mãe, quando, ainda não sabendo escrever, dizia a ela o que colocar nos balões das histórias em quadrinhos que fazia. Entre suas influências, ele destaca principalmente Daniel Azulay, que, com a Turma do Lambe-Lambe, na TV Educativa, ensinava a desenhar, e o programa Vitrine. Mas cita também Monteiro Lobato, Ariano Suassuna, Agatha Christie, Stan Lee e Steve Dikto, além dos quadrinhos da Disney e de Os Trapalhões.
O artista conta que uma mudança de chave nas suas produções ocorreu quando ele entrou no curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Beto é professor de História por formação. “Eu só escrevia humor. E só humor naquela linha besteirol. Mas, quando eu passei pela Universidade, eu comecei a ser politizado. E eu trouxe isso para o meu trabalho”, diz, citando obras como Klã Destino e Forte Poty.
Ao longo da carreira, que começou com a produção “artesanal” de fanzines ainda criança, Beto Potyguara – como assina Roberto Lima – passou pelo jornal Tribuna do Norte, colaborando com ilustrações esportivas para a coluna Apito Final e com a criação de mascotes de times de futebol. Após essa experiência, trabalhou, como ilustrador, chargista, articulista e cartunista, em outros jornais, a exemplo do Jornal do Torcedor e de O Gol.
Ele lembra que sua aproximação com os cordéis ocorreu ao entrar na UFRN e ao conhecer a obra do mossoroense Antônio Francisco: “Eu queria fazer alguma coisa que criasse esse impacto no leitor que a obra dele me fez ter”. A oportunidade surgiu em 2009, quando, para participar de um concurso de quadrinhos, apresentou, além de outras cinco histórias, Carcará, Cabra Pió Num Há. Com roteiro e ilustração autorais, Beto uniu à linguagem dos quadrinhos a linguagem do cordel e o estilo da xilogravura, sabendo que o júri não gostava do uso do seu traço de cartum para a proposta dos quadrinhos, que é mais realista. “O cordel, então, vem daí”.

Entre o sucesso do “quadrinho cordelizado”, que levou o RN pela primeira vez ao Festival Internacional de Quadrinhos e foi indicado ao Prêmio Angelo Agostini, e as publicações de Kika e a Estrela Encantada (2022), produzido para a comunidade surda em coautoria com Klícia Campos e Danilo Knapik, Liga Heroica do Cordel e Nó Cego (2025), houve um período de hiato na carreira de Beto. Nele, entre outras atividades, o artista atuou como palestrante e oficineiro. “Eu nunca tive o apoio de tá com alguém que acredite nisso. Eu tive lampejo de ver o que acontecia lá fora e dizia ‘Vou tentar’”, afirma.
“Todos nós somos capazes de realizar nossos sonhos”
Hoje, quando pensa no futuro, Beto Potyguara revela ter a pretensão de adaptar para crianças a Liga Heroica do Cordel, em razão do interesse que elas têm manifestado ao entrar em contato com a obra por meio de feiras e eventos literários. Além disso, pretende acrescentar à Liga personagens de animes como Naruto e Dragon Ball.
Para dezembro de 2025, tem o projeto de lançar um e-book reunindo o material dos 13 cordéis apresentados até agora. Contudo, deve acrescentar mais um: A Toró da Mulesta, cuja personagem central é a Tempestade, dos X-Men.
Entrar na academia e correr uma maratona vão ter que ficar para depois. Mas, em 2025, Beto já fez muito mais do que esperava: publicou O Galego dos Raio, escreveu e publicou mais 12 cordéis, publicou o “quadrinho cordelizado” Nó Cego e, até agora, participou, como expositor, de mais de 17 eventos.
“Está surtindo o efeito que eu esperava. Muito mais rápido e numa dimensão muito maior do que eu nem podia esperar. É por isso que eu resolvi puxar o freio de mão. Pra também não virar uma coisa industrializada e eu perder o principal, que é a essência. Tem que ter algo meu ali, pra que a pessoa olhe e se identifique”, diz Beto.
“A questão é que a gente tem que ter o compromisso nosso com nós mesmos. Em algum momento, a gente se perde. Conta pra pagar, família, outras coisas. A gente se perde daqueles sonhos que a gente tinha. E todos nós somos capazes de realizar nossos sonhos”, ele acrescenta.