Por Anderson Oliveira de Lima
No ano de 2020, logo pelas suas etapas iniciais, o mundo inteiro passava a ser aterrorizado por uma espécie de vírus novo. Eu tinha quatorze anos, espinhas muito maiores do que as que eu tenho hoje e muita, mais muita ansiedade mesmo. Na época, eu ainda tinha as minhas idealizações religiosas e podia jurar que estava vivendo a primeira parte do livro de apocalipse, da bíblia. Livro responsável por me aterrorizar em cada pensamento pecaminoso que eu poderia ter quando criança – pensamentos que em sua grande maioria eram ou o menino que eu poderia ter achado bonito ou a música da artista pop subversiva que eu não poderia cantar. A pandemia chegou e, junto com ela, todos esses medos recalcados nas memórias de infância. Foram tantas mortes, tantos choros, fome, sangue e incapacidade política, que eu me anestesiei desse período. Parece que ele ficou resumido à estética das máscaras, receitas de pão e lives nas redes sociais; mas e os sentimentos? eu não sei, estão por aqui em algum lugar.
Minha professora, então pediu para que fizéssemos nossas primeiras entrevistas de rua e a única pergunta seria: “ qual foi o impacto da pandemia na sua vida?” Fiquei aflito e, ao mesmo tempo, entusiasmado com a ideia de fazer entrevistas pelas ruas. Pensei: “talvez essa seja a minha chance de vencer a mim mesmo “ ; sim, vencer. Eu sofro de uma timidez estúpida – aquela que controla a vida. Eu realmente a deixo me controlar. Por isso, geralmente não falo. E quando falo é besteira. Daí vem o arrependimento e todos aqueles sentimentos que só os estúpidos os deixam dominar. Estúpidos como eu. Por esse motivo a aflição foi o primeiro sentimento sentido por mim com a notícia de um trabalho de entrevistas, veio mesmo antes do entusiasmo – esse eu normalmente sinto pouco.
Durante a semana após a aula dos sentimentos mistos, tive uma doença que me assolou todo o corpo. Aquele tipo de enfermidade que parece que é uma dívida de outras vidas, aquele tipo de enfermidade que os avós dizem que veio com o vento, mas que parece que o vento nunca leva de volta. Tive medo de não conseguir vencer. Eu seria – mais uma vez – um fracassado. Um dito derrotado da sua própria jornada do herói. Realmente um tolo.
Tive que recolher toda força que tinha e fui atrás das pessoas certas para o trabalho. “ Como assim as pessoas certas? ”, o leitor deve estar a perguntar; e eu lhe digo, a pessoa certa é aquela que na troca de olhar já há uma abertura convidativa. Mas, essas trocas falharam em alguns momentos, isso porque faço analises chulas, por certo, como todo estúpido. Como da vez que disse, delicadamente, bom dia a moça, que já me respondeu que não poderia falar pois estava com dor de cabeça. Eu não imaginei que as risadas no celular eram sintomas novos das dores de cabeça contemporâneas. Eu deveria ter feito essa análise. Então, fiquei com a minha cara de quem comeu e só percebeu depois que a comida tinha vencido na semana passada. Isso fora os nãos secos que quase tiram o seu ar. Eu, pessoalmente, prefiro aqueles ” não inventados”, que todos na dinâmica social sabem que é mentira, mas pelo menos houve um esforço por parte do outro de te convencer, aí você se faz de bobo que acredita e segue em frente. Esses eu até respeito, são verdadeiros criadores de histórias.
Nesse momento, com essas histórias pode até parecer que a minha experiência foi um grande fiasco , ou que eu realmente seja um fracasso no quesito “relações humanas”. Talvez, o leitor esteja pensando em mandar um email depois da leitura me aconselhando a mudar de carreira e trocar o curso da universidade. No entanto, digo que não, a minha experiência foi quase uma epifania de clarice – aquele momento da história que tudo muda, que a revelação aparece. Percebi então, que as entrevistas me causam uma certa epifania. Um desmonte das minhas armaduras e dos meus medos, eu, naquele momento, não sou nada além de um humano que enxerga e escuta. Eu me vi completamente nu.
Maria Roseane foi a minha quarta entrevistada do dia. Uma mulher que, logo com a minha abordagem , já parecia assustada com fantasmas da vida; o que, acredito eu, que contrasta com seu trabalho de vigilante. Por certo, prefere lidar com os vivos do que com as fantasias obscuras da mente. No começo ela não sabia muito o que falar , mas com um certo afago que só as palavras podem ter, ela foi lembrando que poderia ser humana também. Acho que, naquele instante, ela sabia que eu era alguém que estava ali para escutar. Porque foi o que eu fiz. Aquela mulher que até então não sabia o que responder, de repente, estava debruçada sobre seu medo de perder seus filhos. Em certos momentos, até a mão na barriga ela punha, como se a criança ainda estivesse ali para ela proteger, como se todo aquele caos ainda fosse uma cicatriz que não foi curada. Um machucado que, mesmo depois de anos, ainda está aberto e sem cascas. E foi aí , exatamente aí, que eu tive esse momento de epifania que eu havia dito. Logo quando o gravador desligou e a conversa se encerrou.”Eu preciso ser alguém que escute” , pensei.
A pandemia foi um período longo e catastrófico na história da humanidade. Mas, parece que temos tentado escondê-la a todo custo… como se em algum momento todos tivessem sonhado ou sofrido de uma alucinação coletiva de uma peste que veio ao mundo e levou as grandes pessoas que amamos. No entanto, não foi sonho, foi real. Real até demais. No momento da fala da entrevistada, fui tomado por uma indagação profunda dos motivos pelos quais nós, enquanto seres sociais, não estamos pelas ruas dos nossos bairros se perguntando o que realmente aconteceu. O que estamos sentindo? quais foram as suas dores? Quais são os seus medos a partir de agora?; nada disso é perguntado, e por que?
Tive, consequentemente, a ânsia de me tornar um jornalista que escuta, sem medo e sem estupidez – ao menos tentarei. Porque nós, gente fina que mora na terra – e gente nem tão fina assim – precisamos de alguém que nos escute, que nos enxergue sem nenhuma dessas coisas que a gente inventa quando saímos de casa e respondemos que estamos bem sem ao menos pensar. Que seja realmente um processo de um encontro em que o único objetivo é estar vulnerável. Espero ser um jornalista que escuta, e com isso poder , não mudar o mundo – já desencalhei dessa ideia– , mas talvez criar um solo fértil e mais humano. Um solo bom para que os nossos machucados pandêmicos se cubram de terra molhada e deem espaço para que as flores floresçam.