Foto: Anderson Oliveira

Por Anderson Oliveira

No dia 24 de julho desse ano, fui à abertura da exposição “ Antes que eu me esqueça, eu estive aqui” do artista Miguel Angelo Simioli. Não foi uma exposição comum; longe disso. Fui atingido por uma timidez medonha de ir até o Miguel parabeniza-lo por suas obras, passei semanas me martirizando por isso; até que minha querida professora Margarida decidiu nos levar, em um dia de aula, até a exposição; teríamos que pensar como os artistas também contam ou fazem histórias. Como já havia dito, não era uma exposição comum – todos os alunos foram tomados de lágrimas das suas próprias histórias. Estávamos todos afogados nesse Miguel que é tão único e, ao mesmo tempo, capaz de tocar todo tipo de coração. Ele tocou o meu. Foi então que tive a coragem de chamá-lo para uma pequena entrevista. O que o leitor lerá a seguir é uma parte desse artista, que, como todo sensível, é dotado de uma imensidão tão somente dele. 

Miguel Angelo Simioli Campos tem 22 anos e cursa artes visuais na Universidade  Federal do Rio Grande do Norte. Sua primeira exposição “ Antes que eu me esqueça, eu estive aqui”, é fruto de sua experiência com sua avó, que sofria da doença de Alzheimer e da sua própria experiência enquanto uma menino trans. Ele relaciona, numa poesia visual esplêndida, o medo de carregar a doença consigo e o medo de um dia esquecer “ a menina que um dia ele foi”. Nas obras o medo do esquecimento, da perda da memória – que é tão cara ao ser humano – é a base do chão que o Miguel pisa. Uma exposição capaz de tocar até o mais bruto dos homens; isso porque todos nós já nos imaginamos vítimas do esquecimento – nosso ou do outro. Assim como Miguel nunca quer esquecer quem um dia ele foi – e isso pode parecer uma experiência única da comunidade trans – o medo da fragmentação da nossa identidade ser o passo último que nos faz cair no  abismo do oculto é presente em todos nós.

 Além do mais, as cicatrizes de ser esquecido por aquele que mais amamos, sejam parentes, amigos ou um par amoroso, também é um dos nossos fantasmas existenciais; o que o artista fez foi trazer todo o inconsciente coletivo à materialidade artística em uma representação tão bela quanto visceral. Sem nenhum pudor, o próprio artista afirma que a exposição também é para aqueles que se sentem ou são egoístas de carteirinha; aqueles que, pelas necessidades do mundo, precisam se escolher ao invés de escolher o outro, como o próprio Simioli que, ao estar imerso em si mesmo, teve que assistir de longe a doença tomar sua avó por inteiro. Ele fez a única coisa que poderia para salvar a sua avó: a expulsou de si e cravou na memória do mundo. Se na antiguidade a arte para ser uma grande obra necessitava ser a representação mais próxima do real, hoje, na pós -modernidade, artistas como o Miguel nos mostram que as grandes obras não estão mais ancoradas nas representações do externo, mas do interno recalcado no fundo do ser. Essas são as nossas grandes obras de arte. 

ENTREVISTA

Como foi o processo criativo da exposição?

“ Eu pensei várias vezes em não fazê-la, justamente porque o tópico é meio polêmico. A exposição gira em torno das minhas experiências com a minha avó que sofreu com a doença de Alzheimer. Esse tópico veio muito do nada, mas eu pensei várias vezes em desistir justamente por achar que eu não tinha o direito de falar sobre isso. Eu era um espectador, um figurante. O que me motivou a fazer a exposição foi pensar: quantos figurantes será que não existem, sabe? quantas pessoas não tiveram a mesma experiência que eu, de olhar, ignorar e sentir pena; especialmente se sentir egoísta o suficiente para perguntar “ e se isso acontecer comigo, sabe?”. Eu fiz essa exposição com essas pessoas egoístas e medrosas em mente. Eu era assim, e quantas histórias não estão sendo contadas, entende?”

 

Durante a sua exposição, com a sua fala, eu percebi que as pessoas sentiram certo conforto ou entendimento dos sentimentos delas a partir das suas obras. Pergunto isso porque existem segmentos da crítica de arte que argumentam que a  sua função é ser crítica. Mas, o que eu senti pela sua exposição, na verdade, foi um lugar de conforto. A sua arte é esse lugar de conforto ou crítica? O que é arte para você?

“Toda arte é política, não importa qual tipo. Eu não fiz a minha exposição com a intenção de criticar nada. O que eu estaria criticando? a minha avó? a coitada… Ou a doença? Pode ser também… Mas o que me moveu a fazer esse apelo mais sentimental foi porque eu não fiz essa exposição com ódio, crítica ou para  problematizar o fato de, no mundo,  não ter uma cura para a doença de Alzheimer. Eu gosto que a arte possa ser o que eu quiser, e o que eu queria é que as pessoas sentissem o que elas precisavam. Como eu disse, existem muitos figurantes nessa doença; no meu caso, o que eu sinto quando penso na minha avó é culpa, porque eu desisti dela, sabe? Eu não sei se todo mundo se sentiu assim, se foi pena, culpa, tristeza. Eu queria ouvi-las. Eu gosto de pensar que a exposição foi um meio de unir pessoas, e um meio de eu me sentir validado. Eu gosto que a minha arte signifique alguma coisa para outra pessoa; lógico que eu pinto os meus quadros para eles terem os significados que eles tem para mim, mas tem gente que pode interpretar do jeito que quiser. Se você olhar para um quadro meu e ele faz sentido de um jeito para você, quem sou eu para falar que você tá errado? E isso é muito bonito.”

 

A sua exposição tem um toque do seu processo de transição de gênero; quando você estava pintando os  quadros,  a sua identidade foi também um objeto pensado para a exposição ou foi acendendo conforme o processo? Como você explica o processo de aceitação da sua identidade junto ao processo de pintura?

“Eu comecei a molhar meus pés no universo  LGBTQIAPN+ quando eu tinha 15 anos, o que foi um processo… Eu não gosto de rótulos. Acho que eles nos botam em caixinhas e somos muito mais profundos do que só um rótulo. Muitas pessoas trans queimam fotos ou roupas e querem recomeçar a vida a partir do momento que elas transacionaram; eu tentei fazer isso, eu tentei matar a Ana Clara [ nome morto do Miguel] eu tentei matar a clarinha, só que eu não consegui. Porque eu percebi que ela ainda faz parte de mim, sabe? Se eu matar ela por completo vai restar alguém que eu quero ser, mas que importância tem o que eu quero ser se eu não sou verdadeiro ao que eu sou agora, sabe? Então, de certa forma, eu não consegui matar a clarinha, mesmo ela não estando aqui hoje; ela vive dentro de mim. Então, sempre quando eu penso em identidade, eu nunca vou conseguir desassociar o Miguel Angelo da Clarinha – os dois estão entrelaçados. 

Quando eu estava pintando eu sabia porque a exposição fala das minhas experiências e também do meu medo; o meu grande medo é me esquecer, e a minha história começou com a clarinha. quando eu me pinto, sempre vai ser o Miguel Angelo, mas sempre que eu quero entrar dentro da minha história, da minha identidade, quem eu realmente sou –  tirando o meu físico – a clarinha sempre vai estar lá. Eu fiz essa exposição sabendo que ela ia aparecer em algum momento. 

 

Vamos falar dos materiais utilizados na exposição? Não foi utilizado o branco, mas, sim, o corretivo; também as obras todas foram pintadas com tinta acrílica, correto? Você tem preferência por esses materiais, sempre pintou com eles? Como foi o processo de troca da tinta branca pelo corretivo, por exemplo? 

“A escolha dos materiais, principalmente a tinta acrílica, foi porque na teoria era para eu usar tinta a óleo, porque eu tenho todos os itens, mas eu sou muito impaciente. A tinta a óleo é muito foda, mas demora dias para secar… Eu sou uma pessoa muito impaciente. Eu odeio esperar, então a tinta acrílica é por conveniência da minha impaciência, sabe? Eu adoro a praticidade dela. A exposição toda eu fiz com três cores, basicamente, tirando o roxo da minha avó. Foram tinta vermelha, azul e amarela, as cores primárias. Eu gosto de pensar que eu não preciso de muita coisa, sabe? Só as cores primárias, um pincel e Deus do meu 

lado… Não sei porque eu falo deus,  eu não acredito nele [ risadas]. “ O corretivo aconteceu de uma forma muito espontânea; eu não ia utilizar o corretivo nas minhas obras. As primeiras obras que eu fiz foram “ Não resta nada aqui, mas aqui estou eu” , que eu estava fazendo e percebi que tinha um corretivo na minha bolsa, aí eu usei e gostei. Eu gostei que significa mais.  Eu fiz várias falas de artista sobre as minhas obras, e quanto mais eu falava mais eu aprendia sobre as minhas obras, sabe? elas foram crescendo, elas são o que são agora pelo significado que as pessoas me ensinaram que elas têm. 

 

Por que você usou o roxo com a sua avó?

“ Quando alguma pessoa está muito presente na minha vida, eu começo a associar essas pessoas com cores. A minha vó , ela é esse roxo. Porque faz sentido para mim, algumas pessoas já tentaram dar motivos do por que eu inconscientemente escolhi o roxo para minha vó:  na religião cristã, a santa Ana, mãe de maria e avó de jesus,  é representada pela cor roxa. Eu não cresci em uma casa religiosa, então esse significado não faz sentido para mim, ela só é roxo por estar lá. “