Hoje, elas ultrapassaram os limites impostos por uma sociedade preconceituosa, e vêm revolucionando o cenário da moda brasileira
Por Samuel Domingos
Até pouco tempo, se deparar com mulheres transexuais desfilando nas passarelas e estampando capas de revistas, era considerado algo surreal e mal visto. Hoje, através da luta por equidade social, elas vêm conquistando o espaço devido na sociedade, ainda que timidamente. E o que um dia foi inimaginável, agora se tornou real: sim, senhoras e senhores da ala mais conservadora, as transexuais estão na moda, não são efêmeras, e vieram para ficar. Além disso, o Brasil pode comemorar, pois, a primeira modelo transgênero da Victoria Secret’s, é brasileira. Valentina Sampaio (22) é natural do estado do Ceará e estreou no catálogo da linha Pink da marca, em 2019. Essa não é, no entanto, a sua única conquista, a nordestina coleciona vários number one: primeira trans a estrear na capa da revista Vogue e a representar a marca de cosméticos, mundialmente conhecida, L’Óreal, além de se tornar uma inspiração para outras trans girls.
Em Natal, Rio Grande do Norte, terra de muitas belezas — não só as naturais, mas, humanas —, as agências de moda têm ampliado os horizontes. Com uma visão mais progressista, as empresas têm dado espaço não só às mulheres cisgêneros — aquelas em que a identidade de gênero corresponde ao biológico —, mas, também, às mulheres transexuais. E isso é perceptível nos concursos e catálogos de moda potiguar da atualidade, se tornando em uma ação positiva para a visibilidade dessas mulheres.
Manoella Silva (19) — que tem como inspiração a modelo Valentina Sampaio, citada anteriormente — é uma linda natalense de pele bronzeada, dona de um longo cabelo preto, e que mede 1,70m de altura, diz que nunca pensou em entrar para o mundo fashion, e que só se inseriu nesse meio por conselhos de amigos. “Nunca me imaginei trabalhando em algo relacionado a moda, porque eu nunca me senti ‘encaixada’ nesses padrões, pois, a gente não está acostumada a ver pessoas trans trabalhando nessa área”. Ela, então, decidiu participar do Miss Trans RN, terminando empatada em 2º lugar com outra participante.
Questionada se já foi alvo de preconceito por representantes das marcas, ou por colegas cis, no espaço de trabalho, Manoella revela que nunca passou por quaisquer desconforto, mas que conhece amigas que, sim, já enfrentaram alguma situação constrangedora. “Comigo nunca aconteceu nada relacionado a perca de trabalho pelo fato de ser trans, ou algo do tipo, porque isso a gente não comenta, porém, eu sei que algumas meninas já tiveram trabalhos negados; só em alguns desfiles que uma ou duas pessoas ficam com um olhar de desconfiança, porque as pessoas não estão acostumadas a ver pessoas trans nesse meio; eles não imaginam que vão ver uma mulher trans ali inserida”.
Para a modelo, o mais incrível é que ela não precisa se afirmar o tempo todo como uma trans girl. “No meio de trabalho, não precisamos estar nos afirmando como mulheres trans”. No entanto, é evidente que a inclusão dessas garotas na moda ajuda na quebra de tabus e estigmas na sociedade brasileira. O Brasil é o país que mais despreza e mata mulheres transexuais. A expectativa de vida delas é de apenas 35 anos, ou seja, menos da metade das mulheres cis (79,6 anos), segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). “Sim, eu considero nossa inserção como uma forma de representatividade, só que a gente não comenta sobre o fato de ser trans. Estamos ali trabalhando, e pronto; ninguém tenta divulgar as campanhas pelo fato de ser trans. É apenas uma mulher bonita que está fazendo o trabalho dela. O fato de ser trans é apenas algo que faz parte de quem ela é”, termina.
Diferente da Manoella, que precisou de incentivos para se descobrir uma amante da moda, Lana Júlia (22) desde sempre sonhou em ser uma top model, mas, para ela, isso só era possível em conto de fadas, lugar onde não haveria espaço para o preconceito, e que ela seria livre para escrever a sua própria história. “Bem, querer a gente sempre tem vontade de ser, modelo, no meu caso, mas, as vezes, o medo da não aceitação falava mais alto”, recorda ela dos pensamentos negativos. A natalense também lembra das ‘fofocas’ que ouvia a respeito do proprietário da “Tráfego Models” (agência de modelos de Natal), de que ele não aceitava mulheres transexuais, entretanto, preferiu ela mesma descobrir para ter a certeza. “As pessoas falavam muito de George, de um modo negativo, tipo, ‘ah, ele não aceita’; ‘ele não gosta’, e, aquela coisa, se você quer saber de algo de alguém, saiba da própria pessoa. George é maravilhoso”.
Após vencer os seus medos, Lana decidiu, portanto, que havia chegado a hora de escrever a sua história no mundo real, inscrevendo-se no concurso “Tráfego Look 2019” — concurso que recruta novas modelos. Concorrendo com mais de 1000 meninas, ela conseguiu chegar a final, ficando entre as 21 finalistas. Essa foi a primeira vez que Lana participou de um concurso. “Eu nem cheguei a acreditar que meu nome estaria entre as 21 finalistas, mas, quando fui chamada, só não chorei para não aparecer feia nas fotos”, brinca.
Lana lembra que ser uma modelo trans não faz dela especial: “Todas sofrem. Não é tarefa fácil chegar na perfeição estética, seja você trans ou cis. Liliana Gomes, que é sócia da “Joy” — uma das agências mais renomadas de São Paulo — deu o exemplo da Valentina Sampaio em uma aula na Tráfego Look: ‘o contratante chega para a gente e ver a Valentia tão perfeita que nem pergunta o gênero dela, e só diz, ‘quero ela”. A modelo encerra a entrevista dizendo que a busca pela perfeição nas modelos é tão grande, que a transexualidade não se torna um problema para os clientes. Eles querem comprar e vender uma imagem. Apenas.
Ester Martins (18), modelo cisgênero, conta que ficou um tempo afastada das agências, contudo, quando voltou, se deparou com várias meninas trans no mercado, e ficou bastante surpresa com a nova realidade. “Depois de um tempo afastada, eu não imaginava como andava os padrões que os clientes exigiam, porque sempre mudam, e quando eu voltei e vi umas cinco meninas trans, eu fiquei impressionada”. A modelo ainda lembra que, em sua antiga agência, ela presenciava a relutância das marcas para aceitar as meninas trans. “Elas tinham o espaço muito limitado, os clientes batia o pé de que tinha que ser mulher cis, e, se não fosse, era maior confusão; descartam e fingem que não existem”, explica.
“Eu convivo com elas. Tenho mais afeto com duas lá da agência: Alna e Júlia. Elas são muito lindas, desempenham um bom trabalho, em questão de foto e desfile. Na verdade, eu posso dizer que aprendo muito com elas”. No entanto, Ester, que hoje vê o novo cenário com bons olhos, confessa que já teve uma visão um pouco negativa acerca disso. “No começo, eu fiquei ‘bugada’, porque a gente vem de uma cultura preconceituosa em geral, então, eu fiquei: ‘nossa, como assim, mulheres trans desfilando com a gente?!’. Mas, como os dias foram passando, fui vendo o contrário do que eu pensava. Hoje, para mim, elas são as meninas que mais me inspiram”, complementa. A visão de Ester, para a atualidade, é que o espaço delas se expandiu e, para o futuro, que continuará a crescer. Por fim, ela reforça que ainda há clientes preconceituosos, entretanto, por outro lado, outros contratantes até as preferem.