Por Camila Lima

Sempre me perguntei quem foi o primeiro a dizer essa frase. E mais do que isso, quem foi o primeiro a acreditar nela? Cresci ouvindo esse bordão nas manchetes dos jornais. Nunca soou como pergunta, apenas como afirmação. Bandido bom é bandido morto. E nos últimos dias essa frase parece ter se tornado uma espécie de hino informal do país. 

Na terça-feira (28), o Rio de Janeiro viveu um dos dias mais violentos de sua história. Helicópteros passavam sobrevoando o céu da Zona Norte, enquanto nas vielas do Complexo do Alemão e da Penha o som dos tiros não cessava. Foi chamada de Operação Contenção, um nome que soa quase irônico, porque nada ali parecia estar contido. Era o caos exposto, o medo gritando, o sangue se misturando a poeira.

Dizem que o alvo era um bem específico, mas no meio do fogo cruzado ninguém distingue o bandido do morador. E eu fico pensando, será que o país dorme mais tranquilo depois de um dia assim? Sessenta e quatro mortos e ainda assim há quem comemore, como se a morte fosse sinônimo de justiça. Mas o que é justiça, afinal, quando ela só alcança os mesmos corpos de sempre? A gente sabe como funciona. Os criminosos de terno e gravata continuam nos seus escritórios, com ar-condicionado e café fresco.

É curioso observar como a sociedade mede o valor da vida. Quando o criminoso é pobre, preto e favelado, torna-se número e estatística conveniente. Mas quando o criminoso é rico, branco e de sobrenome conhecido, vira personagem. Suzane von Richthofen, Elize Matsunaga… ambas tiveram tudo. Vidas confortáveis, boas oportunidades, ainda assim, cometeram crimes brutais, desumanos. Mandaram matar, esquartejar, manipular. E o que aconteceu? Ganharam espaço na mídia. Viraram documentário, série, livro. O apelo midiatico em volta delas as tornaram quase celebridades. Mas quando o criminoso vem da favela, o destino é sempre o mesmo: o corpo cai e desaparece. É o retrato da desigualdade pintado com sangue fresco. 

No Rio, as facções dominaram o território que o Estado abandonou. E quando o Estado resolve voltar, não volta com escolas, nem com postos de saúde. “Precisamos combater o crime.” E eu não discordo, longe disso. Ninguém gostaria de sair de casa e sofrer o risco de ser assaltado, mas a guerra que se trava nas favelas há décadas não tem nada de combate, tem tudo de massacre. As manchetes falam em “maior operação da história”, “sucesso na repressão ao tráfico”, “territórios retomados”. Mas nenhuma delas fala de Ana, a mulher que perdeu o filho de dezesseis anos indo pra escola. Nenhuma fala de Tiago, que dormia quando o teto desabou depois de um disparo. Nenhuma fala das mães que ainda estão procurando os filhos entre os mortos.

No momento em que essa crônica foi escrita, havia a informação confirmada de sessenta e quatro mortos, oitenta e uma prisões e diversas armas apreendidas. No momento em que ela está sendo publicada, o número se elevou para cento e vinte e um mortos. É assustador olhar a imagem dos corpos enfileirados. Embora existam muitos a serem contabilizados, poucos serão realmente nomeados. Porque o nome humaniza e o sistema não gosta de gente. No fim das contas, é sempre o mesmo ciclo. A polícia sobe o morro, o morro sangra, o asfalto aplaude. No outro dia, o crime volta, mais organizado, mais armado, mais cruel. É como tentar enxugar gelo com um pano úmido. E a gente continua nesse teatro grotesco, fingindo que segurança pública é uma guerra que se ganha com mais balas.

Às vezes eu me pergunto se o que o Brasil quer mesmo é paz ou se quer apenas ver o inimigo cair. Porque quando o sangue escorre de um lado, é tragédia. Quando escorre do outro, é limpeza. Talvez o verdadeiro crime, no fim das contas, seja nascer do lado errado do mapa. Porque aqui, quem nasce na favela já nasce condenado. A justiça tem endereço certo, o presídio tem nome e cor, e o perdão é privilégio de quem tem sobrenome bonito. Bandido bom é bandido morto! Mas me pergunto, e se o bandido for o próprio sistema? Quem é que vai ter coragem de puxar o gatilho?