Foto: Imagem feita por IA, produzido por Mayara Ferrão
Por Natalhia Pereira
O mês de agosto carrega duas datas importantes para a comunidade lésbica brasileira: o Dia do Orgulho Lésbico, celebrado nesta terça-feira (19), e o Dia da Visibilidade Lésbica, comemorado em 29 de agosto. As datas existem para nos lembrar que muita luta aconteceu em busca de direitos, igualdade e reconhecimento para as mulheres lésbicas do Brasil e que, mesmo com o apagamento sistemático que ainda perdura, o amor entre mulheres permanece e resiste.
Stonewall Brasileiro e o 1º Seminário Nacional de Lésbicas
O Dia do Orgulho Lésbico originou-se de um importante episódio que marcou a história lésbica brasileira. O ano era 1983, no centro de São Paulo, em um estabelecimento chamado Ferro’s Bar, onde de dia funcionava um restaurante e durante à noite transformava-se em um bar bastante frequentado pela comunidade lésbica. O local era ponto de encontros de coletivos como o Grupo de Ação Lésbica-Feminista (GALF) e o Lésbico-Feminista. Durante os encontros, o GALF vendia o “ChanacomChana”, uma publicação independente que trazia à tona questões específicas das mulheres lésbicas e discussões sobre as opressões patriarcais.
O acontecimento que movimentou a comunidade lésbica foi a proibição, imposta pela administração do bar, da venda do periódico no local. Esse descaso foi o pontapé que causou revolta entre as mulheres da comunidade, que se encontravam exaustas de todas as violências que já vivenciavam cotidianamente. Alimentadas pelo sentimento de insatisfação, elas organizaram um protesto e tal episódio ficou conhecido como o Levante do Ferro’s Bar, em 19 de agosto de 1983. Com muita pressão das protestantes na linha de frente, os proprietários do estabelecimento viram que lésbicas não são bagunça e permitiram novamente a circulação do “ChanacomChana”. O caso ganhou tanta repercussão que ficou conhecido como o “Stonewall Brasileiro”, em referência ao grande movimento da comunidade LGBTQIA+ em Nova York, em 1969, que marcou a história da luta por direitos civis às pessoas da comunidade.
A outra data comemorada no Brasil é o Dia da Visibilidade Lésbica, celebrado em 29 de agosto. O dia faz menção ao 1º Seminário Nacional de Lésbicas, que ocorreu em 1996, no Rio de Janeiro. O seminário foi realizado com objetivo de criar um espaço seguro para que lésbicas e mulheres bissexuais pudessem dialogar demandas específicas da comunidade e propor ações de políticas públicas para a conquista de direitos e equidade. Essas duas datas são de extrema importância para manter viva a memória de luta e resistência da comunidade lésbica no país e, para além disso, fomentar ainda hoje espaços seguros que valorizem as vivências de mulheres que amam outras mulheres.
Por que eu não apareço nas telas?
Diante de todas as opressões sofridas pela comunidade lésbica, uma em especial afeta de maneira brutal a autoafirmação e a autoestima das mulheres, principalmente quando se faz um recorte racial: a invisibilidade lésbica no audiovisual. A expressão refere-se ao apagamento das vivências e experiências de mulheres lésbicas, sobretudo negras, em narrativas audiovisuais que disseminam estereótipos e aplicam uma lente heteronormativa e branca em seus roteiros. Há a existência de produções cinematográficas que contemplam histórias que não seguem esse script de apagamento, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido para a realização de um cinema que de fato seja uma contribuição cultural para a comunidade lésbica.
Os roteiros das produções audiovisuais que ocorrem esse tipo de apagamento de forma bastante frequente pecam na maneira de representação das lésbicas, uma vez que as cenas parecem servir a um certo olhar fetichizado heteronormativo sobre os corpos femininos. Esse cenário acontece porque quem está na chefia da produção, na grande maioria das vezes, é um homem branco cisgênero e isso escancara a falta de mulheres e, de maneira mais agravante, mulheres lésbicas – e negras – nos cargos de direção das produções audiovisuais.
O filme “Azul é a cor mais quente”, do diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, é um grande exemplo de como aplicar uma ótica fetichizada em narrativas lesboafetivas com a polêmica cena de sexo de 7 minutos entre duas mulheres. A problematização não se faz ao redor da duração e do quanto explícito a cena foi, mas sim a serventia de quais olhares e desejos aquilo foi produzido. O desconforto não foi causado somente para quem assistiu, mas as próprias atrizes envolvidas na cena, Léa Seydoux e Adèle Exarchpoulos, relataram a exaustão nos sets de gravação e o comportamento abusivo do diretor.
Quando não são cenários fetichizados como os apresentados em “Azul é a cor mais quente” são roteiros carregados com um final trágico, como se narrativas lésbicas e o famoso “final feliz” não pudessem coexistir, da mesma forma que sempre existiu em filmes héteros. É um caminho muito conhecido e perigoso: pautar as histórias da comunidade lésbica exclusivamente com o sofrimento. E tudo se agrava quando se estende isso para uma perspectiva racial. O acervo de filmes com mulheres negras lésbicas é escasso, provando que a depender da cor da pele o apagamento é mais agressivo. Ser uma mulher lésbica e esperar aparecer nas produções provoca uma grande decepção com a mediocridade encontrada nos filmes, mas ser uma mulher negra lésbica é nem cogitar ter a sua vivência relatada.
Esse panorama criou legiões de mulheres lésbicas que assistiram a essas produções e temiam que não pudessem existir em um futuro de afeto e reciprocidade. Formou uma geração de mulheres negras frustradas porque ter a cor da pele que elas tinham era sinônimo de desamor. O cinema tem um grande poder no imaginário social e a escassez de produções cinematográficas que pensem nessas mulheres contribuiu para o silenciamento desse grupo, como se elas não devessem existir. Mas graças aos avanços no audiovisual e à coletividade da comunidade, novas produções audiovisuais estão sendo um afago para essas mulheres. Filmes que tratam o desejo e os corpos dessas mulheres de maneira humanizada e não sexualizada. Produções que trazem roteiros pautados em reciprocidade e afeto entre lésbicas, e não manchados com uma perspectiva heteronormativa que não contempla tais vivências.
O filme “Retrato de uma jovem em chamas”, da cineasta francesa Céline Sciamma, traz a possibilidade de uma produção audiovisual que apresenta mulheres que amam mulheres longe de estereótipos e que podem ser retratadas com sensibilidade, assim como o filme “The Watermelon Woman”, escrito e dirigido por Cheryl Dunye, um dos poucos filmes que a protagonista é uma mulher negra lésbica (que, inclusive, é encenada pela própria diretora do filme) e dialoga de forma íntima com as mulheres negras, dizendo: nós existimos. Existíamos na noite no bar Ferro’s Bar com a veiculação de um jornal feito por e para lésbicas, existimos nos roteiros de Cheryl, Céline e de tantas outras cineastas que escutam a comunidade e, para além dessas datas que são de fato importantes pois revivem a memória, as mulheres lésbicas, sobretudo as negras, querem existir, amar e celebrar a vida (se é que não são sinônimos) nos demais dias do ano.