Com versos inspirados na periferia, natalense vai disputar campeonato em São Paulo
Por Joana Mercedes e Valcidney Soares
O nome dela é Natália Kelly Lima da Silva, mas pode chamar de Ore. A natalense criada no bairro de Mãe Luiza (Zona Leste) é uma das finalistas do Slam BR, o Campeonato Nacional de Poesia Falada, que acontecerá em dezembro no estado de São Paulo.
O nome artístico é uma sigla para o que ela considera os principais defeitos existentes em todas as pessoas: orgulho, raiva e ego. Aos 18 anos, a poetisa conquistou a vaga na etapa nacional após uma batalha acirrada disputada em Mossoró-RN. Entre 12 competidores de três cidades diferentes, a campeã foi Ore, uma mulher, negra e periférica.
O slam é um gênero de poesia criado em Chicago, nos Estados Unidos, na década de 1980. No Brasil, encontrou lugar dentro da periferia e do rap. Nesse estilo, o poeta tem a liberdade para recitar o texto como quiser. Métricas e rimas, por exemplo, não são necessárias. Mas existem algumas regras especiais, dentre elas a proibição de usar instrumentos musicais e o limite de três minutos para se apresentar. No Rio Grande do Norte, a seletiva potiguar contou com batalhas de performance em Mossoró, Natal e Currais Novos.
O começo da escrita de Ore veio há quase sete anos, num concurso de poesia da escola. O professor sorteou diferentes locais de Natal para que os estudantes fizessem um texto. Ela tirou o pôr do sol de Ponta Negra e venceu o concurso da sala de aula. Dois meses depois conheceu o rap. As letras de músicos como Projota e Emicida a influenciaram a não parar e ela decidiu escrever suas próprias canções. “Toda aquela vivência, aquela verdade, aquela necessidade de mostrar a realidade. Isso me inspirou muito e a seis anos eu comecei a escrever rap e nunca mais parei”, afirma.
Morando numa das vielas de Mãe Luíza, a casa da jovem é simples. Lá, a família está dividida em dois lares. Em um, está o avô, a tia e um casal de primos. No seu, ela vive com o pai, aposentado por problemas de saúde, e a irmã. Vítima de paralisia nos nervos, o pai da garota teve que largar os trabalhos como porteiro e vendedor na barraca da família na praia e hoje recebe auxílio do governo. A mãe, por outro lado, está desempregada.
A família convive, ainda, com os problemas de estrutura urbana. Após retirar água de um poço, José Belo da Silva, 74, avô da garota, relata as dificuldades que os habitantes da comunidade de Mãe Luíza sofrem pela escassez hídrica. Sem distribuição de água a partir das 15h, os próprios moradores precisam recorrer aos poços das suas residências.
Para ele, a vitória da neta em Mossoró e a futura ida para a principal cidade do país se tratam de algo predestinado. Emocionado, Belo acredita no talento da neta e diz que as coisas na vida são questão de dom e destino.
Segundo Ore, o principal impacto do rap é o conhecimento. No dia da entrevista, a poeta instalou internet em casa pela primeira vez. Com isso, ela vai poder se dedicar mais ao que gosta. “É uma glória porque eu vou poder estudar, vou poder fazer mais slam, vou ter mais acesso à informação. O rap traz o conhecimento, não só o rap mas todas as artes”, diz.
Mas mostrar que a favela existe vai além de escrever músicas e poemas. Ao lado de colegas, a jovem busca realizar intervenções artísticas fora da comunidade. Uma das últimas mobilizações de Ore foi contra a proposta de verticalização da orla de Ponta Negra, próxima à Mãe Luíza. Descendo até a praia, ela conversou com os transeuntes. “A gente falou: ‘ó, tá passando por cima [do bairro] porque tem o tal do Plano Diretor que eles querem verticalizar, querem esconder a favela, e saímos explicando’. Então, a informação é o que tá sendo mais importante na arte”, aponta.
Em suas escritas, o combustível principal usado pela compositora é o dia a dia na favela. Ore se inspira não só em si, como também nos amigos que vivem a realidade da periferia. Abuso de poder, enquadro da polícia e racismo estão entre os temas utilizados por ela para mostrar o que é ser negra e filha de uma comunidade pobre.
Se hoje a jovem se orgulha da sua cor, nem sempre foi assim. Aos poucos, a artista passou a compreender a sexualização que o corpo negro sofre, “desde a creche”, e entender o assédio que passava. Segundo ela, a discriminação causa um não reconhecimento da própria identidade. “A gente não é ensinado a se achar bonita nem a achar a outra bonita”, observa.
Acreditando no poder da favela, ela vê necessidade de levar a comunidade para fora de seu círculo social. Para isso, busca mostrar que o povo possui uma voz humana e que ninguém deve sofrer preconceito pela cor, sexualidade, religião ou local de moradia. “Acho que a principal força da favela vem da esperança de mostrar não só para a elite, mas mostrar pra gente mesmo que a gente é gente, que temos uma força, uma vida, que a gente não pode ser discriminado de alguma forma”, conclama.
Por outro lado, se o preconceito está enraizado na sociedade, nem sempre é possível fugir dele. O rap e o slam, então, surgem como ferramentas para buscar mudar a visão sobre a negritude e a favela. “Todo dia é uma desconstrução, porque todo dia é um preconceito novo, todo dia alguém está morrendo, alguém está sendo perseguido no shopping, todo dia a polícia está vindo e invadindo essas casas”, analisa. “Todo dia acontece alguma coisa. Então, todo dia a gente está tendo que lutar”.
Para o futuro, a cantora é enfática nos desejos: pretende ser MC e professora.: “Ainda almejo muito fazer uma faculdade de biologia ou história, alguma coisa que eu possa ensinar, passar o conhecimento e botar arte no meio disso”. Mas, e se ela precisar escolher? Ore diz que infelizmente — ou “felizmente”, pontua — vai escolher o sonho principal de viver de música. “Antes mesmo de escrever eu já sonhava em ser cantora, em ter uma multidão cantando uma música minha”.
No Slam BR, Ore não precisará contar com a sorte, porque talento ela tem de sobra.